terça-feira, 26 de dezembro de 2023

GUINÉ-BISSAU NA ROTA DE INSTABILIDADE PERPETUA? OU OS POBRES CADA VEZ MAIS POBRES

A Guiné-Bissau despede-se de 2023 com um inesperado retorno à instabilidade política, depois de ter dado ao mundo sinais de determinação para enterrar o ciclo de lutas intestinas e enveredar pela reconciliação nacional.

Desde 04 de Dezembro de 2023, o país está novamente sem Parlamento, numa súbita decisão presidencial que se seguiu a um tiroteio que fez dois mortos entre as forças da ordem na capital, Bissau.

O Presidente Umaro Sissoco Embaló decretou a “dissolução” da Assembleia Nacional Popular (ANP), com o argumento de ter havido tentativa de golpe de Estado militar alegadamente idealizada e patrocinada pelo líder parlamentar, Domingos Simões Pereira. 

 Na generalidade da opinião pública nacional, porém, a decisão foi acolhida com repulsa e apreensão, sendo nalguns casos considerada “nula e sem nenhum efeito jurídico”, por contrariar a lei e a Constituição da República.

Com essa ocorrência, criou-se o sentimento generalizado de que o Chefe de Estado não só violou a lei e as normas constitucionais, como também desprezou a vontade popular que determinou a eleição do Parlamento agora dissolvido.

Simões Pereira, o principal visado, foi mais longe ainda, quando denunciou “golpe de Estado constitucional” perpetrado por Sissoco e desafiou este último a apresentar publicamente provas das suas alegações de tentativa de golpe de Estado.

Aparentemente, Sissoco preferiu dispensar o trabalho da “comissão de inquérito” por ele previamente anunciada para – como mandam as normas – apurar a veracidade dos factos e as responsabilidades na aludida intentona golpista.

Esse cenário marcou o retomar das hostilidades entre as duas principais figuras políticas do país, antigos companheiros de luta hoje desavindos, que muito recentemente pareciam ter feito as pazes rumo a uma genuína reconciliação.

Umaro Sissoco Embaló e Simões Domingos Pereira são todos quadros do PAIGC, que, em determinada altura, abraçaram a mesma ideologia e o mesmo projecto político.

A sua separação começa, em 2018, quando o primeiro se junta a 14 outros militantes dissidentes para criar um novo partido político, designado MADEM-G15.

A nova formação política fundada pelo grupo dos 15 dissidentes, ou Madem-G15 (Movimento para a Alternância Democrática), estreou-se nas legislativas de 2019 com a conquista de 27 deputados num Parlamento de 102 lugares, tornando-se na principal oposição do país.

Genuína reconciliação e compromisso total com a Guiné-Bissau para tudo fazer e evitar o retorno à instabilidade política foi a promessa de ambos no termo das últimas eleições legislativas de 4 de Junho deste ano.

Porém, o quadro atual sugere que, mais uma vez, o país transita de ano num cenário de suspense e desespero, como em 2022.

Ou seja, contra todas as expectativas, o país volta a ganhar como “prenda” de Natal e de fim de ano o habitual “cabaz” de tensão política com epicentro no eterno conflito entre a Presidência da República e o Parlamento.

PARLAMENTO COMO “FOCO” DA INSTABILIDADE (?)

Na história do país, esta é a terceira dissolução da casa das leis em circunstâncias ou com argumentos idênticos, depois do que aconteceu, em 2002, com o Presidente Kumba Yalá (2000-2003), pouco antes da sua destituição.

Mas é a segunda vez com Sissoco, em apenas um ano, desde 2022, quando também “atirou as culpas” aos deputados por tentativa de “inviabilização” do Estado.

Em 2022, ele acusou o Parlamento de inviabilizar o “normal relacionamento” entre os órgãos de soberania por alegada recusa de se sujeitar ao controlo do Tribunal de Contas e por “protecção” de deputados indiciados da prática de vários crimes, incluindo o de corrupção e peculato.

Com uma justificação quase similar, desta vez o chefe de Estado prometeu igualmente convocar eleições legislativas antecipadas “em tempo oportuno” e reconduziu em funções o primeiro-ministro saído do Parlamento dissolvido, antes de ser substituído por um outro, uma semana depois.

Em causa estariam confrontos registados, a 01 de Dezembro, em Bissau, entre elementos da Guarda Presidencial (GP) e da  Guarda Nacional (GN), após uma tentativa destes últimos de retirar das celas da Polícia Judiciária (PJ) dois governantes detidos preventivamente.

Como detidos estavam o então ministro da Economia e  Finanças, Suleimane Seidi, e o seu  secretário de Estado do Tesouro, António Monteiro, por alegada corrupção.

Os dois governantes são acusados de pagamento irregular de cerca de 10 milhões de dólares de dívida do Estado a um grupo de 11 empresários ligados ao PAIGC, partido de Simões Pereira que liderava a coligação no poder.

Para Sissoco, a ação da GN foi uma tentativa de subversão da ordem constitucional “com o patrocínio” da Assembleia Nacional Popular que, no seu entender, “não exerceu o seu papel fiscalizador dos atos do Governo”.

Em vez disso, acusou, o Parlamento saiu “em defesa” de pessoas suspeitas de fraude orçamental, quando devia proteger os interesses do Estado.

Domingos Simões Pereira é o presidente da coligação predominante no Parlamento, a Plataforma Aliança Inclusiva (PAI – Terra Ranka), liderada pelo PAIGC, que suportava o Governo do primeiro-ministro Geraldo Martins, agora substituído por Rui Duarte de Barros.

A PAI – Terra Ranka venceu com uma maioria absoluta de 54 dos 102 assentos do Parlamento guineense, antes de passar para 72 deputados depois de alianças pós-eleitorais celebradas com o Partido de Renovação Social (PRS) e com o Partido dos Trabalhadores Guineenses (PTG).    

Tanto Simões Pereira quanto Geraldo Martins e Rui Duarte de Barros bem como os governantes detidos (Suleimane Seidi e António Monteiro) são todos quadros dirigentes  do PAIGC, partido que prontamente se demarcou do novo governo de iniciativa presidencial imposto por Sissoco.

Ao que tudo indica, o PAIGC ficou exposto ao risco de fissuras que poderão abalar profundamente a sua coesão interna, quando muitos dirigentes seus são colocados perante o dilema de se manter fiéis ao partido ou juntar-se a um Executivo formado ao arrepio da vontade partidária.

ARGUMENTOS E CONTRA-ARGUMENTOS

Os críticos da decisão presidencial socorrem-se do artigo 94.º da Constituição guineense que proíbe expressamente a dissolução do Parlamento nos seus primeiros 12 meses ou a menos de seis meses do fim do mandato presidencial.

A ANP ora dissolvida completaria os seus primeiros 12 meses, em meados de 2024, e o actual mandato de quatro anos de Sissoco vence dentro de quase dois meses.

Alguns especialistas locais e estrangeiros citados pela imprensa acrescentam que, mesmo que provada, uma tentativa de golpe de Estado “não dá direito” à dissolução do Parlamento, “sob pena de se estar a reagir a um golpe de Estado com outro golpe de Estado”.

Por exemplo, o constitucionalista português Jorge Bacelar Gouveia, que ajudou a escrever a actual Constituição guineense, explica que a lei tem mecanismos próprios para reagir aos atentados à ordem constitucional dos Estados, incluindo a responsabilização criminal dos seus autores.

Mas o Presidente Embaló considera que a Constituição é “pouco clara sobre estas questões”, numa altura em que o país se encontra num “momento de excepção”.

No seu entender, o legislador não pode prever tudo e não fala de [tentativa de] golpe, pois que, prosseguiu, “se se consumasse o golpe de Estado, iríamos suspender a Constituição e ficava um comité militar."

Por isso, muitos analistas e ativistas da sociedade civil consideram estar-se perante “uma frustração total” para o povo guineense, que volta a virar-se para a já exausta comunidade internacional em busca de socorro.

Um grupo de jovens guineenses chegou a manifestar-se diante da sede da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), em Bissau, para pedir a anulação do decreto presidencial que dissolve a ANP.

Um outro grupo de cidadãos guineenses residentes em Portugal fez o mesmo à frente da Embaixada da Guiné-Bissau, em Lisboa, enquanto outros foram protestar diante da sede das Nações Unidas, em Nova Iorque.

Indignados contra o que chamaram de “violação flagrante” da Constituição pelo Presidente, eles denunciaram “uma clara intenção” de se instalar a ditadura, na Guiné-Bissau.

Exigiram ainda que fosse respeitada a “vontade da nação guineense”, tal como “inequivocamente expressa” nas urnas, durante as eleições legislativas de 04 de Junho.

Acontece que a comunidade internacional em geral acusa hoje um cansaço indisfarçável e alguma indiferença em relação aos crónicos problemas da Guiné-Bissau.

Até mecanismos sub-regionais como a CEDEAO – que  já “deu cartas” na região num passado recente – têm hoje os seus remédios praticamente esgotados ou em crise.

São exemplos disso os casos da vizinha Guiné-Conakry, do Mali, do Níger e do Burkina Faso,  onde a organização comunitária tem “elevadas contas” ainda por saldar. 

Os quatro países são hoje controlados por oficiais militares que, a partir de 2020, derrubaram governos civis democraticamente eleitos, numa clara afronta à autoridade da CEDEAO, desafiando os seus apelos para o regresso à ordem constitucional e ameaças de intervenção militar.

E as crises políticas, na Guiné-Bissau, vêm do limiar da era pós-colonial, após o reconhecimento da Independência nacional por Portugal, em 1974, quando Luís Cabral do PAIGC se tornou no primeiro Presidente do país.

O primeiro incidente dá-se, em 14 de Novembro de 1980, quando Luís Cabral, Irmão de Amílcar Cabral, é derrubado num golpe de Estado sem derramamento de sangue, pelo então primeiro-ministro João Bernardo Vieira (Nino Vieira).

Meses depois veio o caso 17 de outubro, no qual varias pessoas foram mortas e outros fuzilados a sangue frio.

Desde então sucederam-se outros golpes de Estado consumados, tentativas abortadas e outras formas de rebelião, levando consigo várias vidas humanas, incluindo do próprio Nino Vieira, em 2009. 

A última tentativa confirmada de golpe de Estado foi, em 01 de Fevereiro de 2022, quando Sissoco saiu ileso mas várias pessoas morreram no ataque de um grupo de homens armados contra o Palácio do Governo onde decorria uma reunião do Conselho de Ministros.

Por hora, veio este de tiroteios em Bissau que também fez vítimas mortais. Isto para ou vai em frente?

Notabanca, 26.12.2023

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