CASO 17 DE OUTUBRO DE 1985 AO DIAS DE HOJE NA GUINÉ-BISSAU
GUINÉ-BISSAU: Caso “17 de Outubro de 1985” (PARTE I)
Opinião: Jailson CuínoUm período, para a minha geração, em que parecia que tudo estava a começar de novo (1980-1985). Estávamos no Liceu Nacional Kwame N´Krumah.
O Estado era composto de nomes de uma geração honesta, sacrificada pela luta de libertação e comprometida com a nossa pátria amada, desde a clandestinidade à mobilização e à luta armada mas, sobretudo, pela vinda de alguns compatriotas que tiveram a oportunidade de ir estudar para fora do país para a reconstrução nacional. Hoje, a palavra diáspora está na moda e com razão.
Estava tudo a tomar forma, cinco anos após o Golpe de Estado que derrubou o primeiro presidente da Guiné Bissau independente. Parecia que era o início do nosso problema político/armado, sociocultural e étnico. Queríamos ressaltar aqui o nosso compromisso com a História e os valores do humanismo, porque este caso continua a ser muito delicado para abordar, mas ao mesmo tempo percebemos através de leituras e algumas entrevistas feitas, que todo o processo chegou uma altura em que já não se podia voltar atrás. Alguns camaradas já estavam desfeitos devido à tortura, um assunto que vamos retomar mais a frente.
Antes de tudo gostaríamos de chamar atenção para o conceito que nos interessa - Golpe: intentona ou Golpes encomendados. Tudo isso podia ser entendido, não fosse o caso da Guiné-Bissau, onde tudo pode acontecer de forma estranha e rápida, capaz de mudar todo o curso da História, mesmo sendo ela ininterrupta, no nosso caso causada pela fúria dos homens.
O glossário referido da política internacional pode descriminar-se aqui em várias línguas: “Coup d´Etat” em francês; “Putsch” ou “Staatsstreich”, em alemão, entenda-se por queda “ilegal”, do poder instituído. Mas, no nosso caso, segundo entendimento de algumas sensibilidades na Guiné, pode ser necessário, mas sobretudo contra todas as teorias universalmente aceites.
O caso “17 de Outubro” é ou não é uma tentativa de Golpe? Esta questão vai ser respondida pelos entrevistados e pela revisão da literatura e alguns documentos das autoridades de então. Em último caso o nosso juízo crítico final sobre todas as audições e consultas, enquanto registador e amante da verdade prevalecerá!
Mas também relembrar o papel da História. Ela não faz julgamentos mas traz a possibilidade de não cometermos o mesmo erro nos conflitos entre os irmãos. Isto é, para que não se repita.
Em todo este processo havia claramente uma sombra do novo poder instituído, pelo derrube do presidente Luís CABRAL, em 14 de Novembro de 1980. Chamava-se Paulo Correia, um dos mais temidos combatentes da etnia Balanta que fora o ministro da Defesa, tido como referência devido à sua bravura e moralidade no seio dos militares. Depois de várias tentativas para aniquilar politicamente o camarada Paulo CORREIA, sempre com receio de um dia vir a alterar a nova ordem – Conselho de Revolução - daí iniciaram as fases de mal-estar entre irmãos de armas da luta de libertação nacional.
Estava claro, para os mais atentos, que o regime precisava de ser instituído pela força, e essa força vinha naturalmente das armas, “o poder não devia ser partilhado”, era a maior divisa do novo chefe.
Como é habitual na Guiné, a necessidade de mudança de estatuto social e político fazia-se, ou ainda acontece, através da intriga e traições dentro do seio das chefias com intuito de dividir para melhor reinar.
E foi mesmo nos primeiros anos após o “14 de Novembro” que começaram a aparecer interesses que não tinham nada a ver com os ideais da luta, factos que vão ser aqui abordados - queremos chamar atenção, eles devem ser vistos enquanto interesse puramente histórico.
O camarada Queba SAMBU, numa das suas passagens do seu livro «Ordem para matar» (p. 103), explica-nos que teve lugar uma reunião presidida pelo camarada Victor Saúde MARIA, na ausência do presidente Nino VIEIRA, devido um certo mau estar que se fazia sentir no seio dos oficiais Balantas consubstanciados pelas prisões arbitrárias de alguns deles. Depois da abertura da sessão passou a palavra ao camarada Paulo CORREIA, enquanto ministro da Defesa (das Forças Armadas). Este, por sua vez, disse que não tinha conhecimento do que se estava a passar.
A mesma pergunta foi dirigida ao Queba SAMBU, novo chefe dos serviços de contrainteligência militar, que fora nomeado, depois de ter chegado de uma formação especializada na antiga União Soviética, para o posto.
Segundo as suas palavras, confirma ter omitido algumas partes porque tinha trocado informações com Iafai CAMARÁ, homem forte dos blindados, sobre os nomes dos supostos golpistas. Essa situação, dizia ele, colocava-o numa situação complicada devido ao posto que ocupava.
Essas declarações contêm não só imprecisões como também contraria o que realmente estava a acontecer: prisão arbitrária de indivíduos inocentes, “fruto de insinuações de pessoas desconhecidas” - disse ele, para negar as interferências dos seus homens nesta prática. Antes de passar a palavra, como quem preside à reunião em substituição do então presidente Nino VIEIRA, de viagem à Cuba, camarada Victor Saúde MARIA pediu um ponto de honra pelo Vice-chefe Estado Maior das Forças Armadas, camarada João da SILVA para intervir, este disse, de forma não muito clara, o seguinte: “já é tempo de pôr termo às conspirações tribais nas Forças Armadas, com base no facto da maioria ter a mania de se atribuir o direito de mandar nos outros”. - (cit. por Queba SAMBU, 1989, p. 103). Curiosamente, este mesmo sentimento era partilhado pelo camarada Manuel Saturnino COSTA, ministro do Interior, também presente na reunião.
Depois destas declarações, o camarada Victor Saúde MARIA pediu-lhe que fosse mais claro. Sentiu-se alguma tensão e trocas de “galhardetes” e João da SILVA fez-se entender que estava na posse de informações, segundo as quais estaria a ser preparada uma revolta dentro das Forças Armadas, encabeçada pelo alto dirigente, sem chamar pelo nome, mais uma vez. O Camarada Victor Saúde MARIA deu por encerrado o encontro e saiu a correr para a Embaixada de Cuba, a fim de entrar em contacto com o presidente Nino VIEIRA, na tentativa de evitar o pior, com a sua presença em Bissau, com alguma Urgência.
Este é o que chamamos a primeira parte de um artigo que pensamos ser longo devido à quantidade de informações disponíveis. Mais uma vez chamamos atenção do nosso compromisso com a História, sendo ela não julgadora mas sim repositório dos factos.
Notabanca; 21.12.2023
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