quarta-feira, 13 de julho de 2022

REGALLA DIZ QUE FOI FERIDO NA PERNA COM BALA E PODIA SER MORTO NO ATENTADO EM BISSAU

Líder da União para a Mudança e ministro dos Assuntos Parlamentares no Governo de Aristides Gomes, que o Presidente Umaro Sissoco Embaló demitiu assim que tomou posse, Agnelo Regalla foi alvo de uma tentativa de assassinato na sua casa em Bissau, a 7 de Maio, facto que o obrigou a viajar até Portugal para a sua convalescença. Jornalista e político, foi sempre reconhecido como poeta, mas sem obra publicada. Algo que vai mudar agora, com a edição de um livro de poemas na editorial Novembro até ao final do ano. Em Maio foi vítima de um atentado, tendo ficado ferido numa perna

Acha que a intenção era mesmo matá-lo ou queriam só avisá-lo?

 Fiquei ferido numa perna, podia ter sido pior, mas continuo convicto que o objectivo, de facto, era a eliminação física, depois de declarações que tinha feito no quadro de uma reunião, no espaço de consulta dos partidos democráticos, em que tinham sido abordados temas que têm a ver com as questões do petróleo, da sua exploração, da ilegalidade, da inconstitucionalidade, das acções do Presidente da República. Do dito Presidente da República, na medida em que continuamos a dizer que é o Presidente eleito, porque até hoje não foi...


...Concluído o processo eleitoral...


Toda a gente reconhece que o Supremo Tribunal lhe deu razão, estando ou não estando de acordo. Agora, a legitimidade requerida, que passa pela sua apresentação perante a Assembleia Nacional Popular, nunca chegou a acontecer, na medida em que ele se recusou, embora tivesse sido chamado à atenção nesse sentido. Mas vê-se que entre os seus objectivos não corresponde nenhum respeito pela Constituição. Ele quer de facto impor as suas regras, fazer tudo da forma como quer fazer e aponta para um regime onde ele quer, pode e manda. Portanto, uma ditadura está a ser gradualmente instaurada no país.

 

Tinha recebido ameaças antes?


Já tinha ouvido sinais. As ameaças, já as conhecemos, nós todos que estamos na oposição. Humanistas, bloguistas, caso do jornalista António Aly Silva, deputados, caso do Marciano Indy, e outros activistas foram espancados, inclusive aqui em Portugal, e ao que tudo indica pelos mesmos elementos, sobretudo, os que foram raptados e sequestrados na Guiné-Bissau. Essas ameaças não são dirigidas pessoalmente, são dirigidas a toda a sociedade, quem pisar o risco corre o risco de sofrer as consequências, e as ameaças foram sempre evidentes da parte dele...


Acha que aqueles que o atacaram o fizeram por ordem do Presidente Umaro

Sissoco Embaló?


Os elementos todos apontam num determinado sentido, apontam para que seja o regime, o regime guineense tenta calar aqueles que de facto levantam a voz. As pessoas não querem muito, querem que sejam respeitadas a Constituição e as leis, que o direito e as garantias fundamentais sejam resultado de uma prática permanente para que as pessoas tenham liberdade de expressão, para que haja liberdade de imprensa, para que toda a gente possa falar o que pensa, são esses os fundamentos da democracia.


Essas liberdades e esses direitos estão condicionados na Guiné-Bissau?


Absolutamente condicionados. Não há direito à manifestação, todos aqueles que tentam são reprimidos. O Ministério do Interior age de uma forma absolutamente totalitária. O país está há três anos praticamente sem ensino, as escolas não funcionam ou funcionam parcialmente. O maior liceu do país e o mais antigo está completamente degradado, inclusive as portas foram fechadas pelo risco que representa para os estudantes, para os alunos e isso demonstra que, de facto, este regime tem pouco a ver com a educação, com a cultura, com a saúde. E que eles têm bloqueado praticamente tudo o que é manifestação em relação a estes assuntos. Quanto à imprensa, é mais do que evidente – jornalistas foram espancados, uma rádio foi completamente destruída por duas vezes por agentes. Falam de casos isolados, mas são tantos casos que é difícil que sejam casos isolados.


O seu ataque está a ser investigado?


A Polícia Judiciária (PJ) esteve lá, a Polícia de Ordem Pública também apareceu e, estranhamente, ouvimos dizer de um comissário ou vice-comissário da polícia que teria sido um caso isolado, quando eles estiveram lá nessa noite, viram que a PJ estava lá e foram-se embora, portanto não sei onde é que eles foram sair com a conclusão. Mas, de momento, a PJ está a investigar, as cápsulas das balas foram recolhidas, o veículo e os elementos do veículo foram apresentados à polícia. Descobrindo este caso eles terão descoberto os actores de todos os actos anteriores, porque é a mesma gente que actua com intenção de silenciar as vozes discordantes.


E quem são eles?


Neste momento, anda à solta um género de esquadrão da morte. Num Estado de direito, quando um grupo de pessoas actua impunemente, cabe ao Estado garantir a segurança do cidadão, portanto, se o Estado não faz nada… A responsabilidade primeira do Presidente da República é o respeito da Constituição e no respeito da Constituição tem que garantir a segurança do cidadão.


Teme pela sua vida?


Sim, isso é normal. O sinal foi dado e eu penso que tudo pode acontecer a qualquer momento.

 

Quando vai regressar à Guiné-Bissau?


Conto regressar em breve, dentro de mais 15 dias, uma vez que esteja em condições, que o joelho responda… Mas vou regressar, com todas as consequências que possam acontecer. Como cidadão, como patriota, como líder de um partido político, a União para a Mudança, tenho o dever de estar presente e de continuar a defender as posições do meu partido e aquilo que nós consideramos que é melhor para a sociedade guineense. E, sobretudo, continuar a lutar para que os objectivos da instauração de uma ditadura não sejam conclusos.


Vai participar na campanha para as eleições antecipadas de 18 de Dezembro?


Vou, se nos deixarem fazer o congresso. Têm andado a impedir alguns partidos de fazer o seu congresso, talvez só os partidos do regime é que o poderão fazer. Mas vamos participar na campanha eleitoral e de forma declarada batermo-nos contra aqueles que de facto querem destruir o Estado de direito democrático.


O que vai defender na campanha?

 

A instauração de um verdadeiro Estado de direito democrático, fundamental para que haja desenvolvimento. A defesa dos direitos e as garantias dos cidadãos dos seus direitos, um investimento forte na educação e na saúde e um aspecto que tem sido extremamente descorado e que pensamos ser fundamental para o desenvolvimento que é a questão da cultura – valorizar a nossa cultura na sua diversidade étnica. Sentimos que houve campanhas assentes precisamente no contrário, na divisão étnico-religiosa e isso em países como o nosso, com níveis de analfabetismo de 60%, tem implicações extremamente fortes. A Guiné-Bissau foi sempre um país onde não havia divergências étnicas, tanto que está a acontecer uma miscigenação étnico-cultural extremamente forte, através do casamento. É preciso valorizar esses aspectos e mostrar que a diversidade cultural, étnica e religiosa não pode ser um impedimento ao desenvolvimento, devem ser valorizados para poder criar os alicerces da unidade nacional guineense. Desenvolveu uma campanha assente na questão de etnias que religiosamente professam e entrado nesse jogo que é extremamente perigoso para a unidade nacional e para o Estado".

 

Há uma procura da diferença étnica para ganhar peso em termos políticos?

 

Tem-se falado muito de questões étnicas. O Presidente desenvolveu uma campanha assente na questão de etnias que religiosamente professam o islão e têm-se entrado nesse jogo que é extremamente perigoso para a unidade nacional e para o Estado. O Estado está fragilizado, as suas instituições não funcionam e há uma tendência cada vez maior para a sua degradação. As pessoas não sentem a presença do Estado e tentam sobreviver de outras formas... É cada um por si e Deus por todos, como se diz. As pessoas vão para o Estado, não para servir o povo guineense, mas para se servir do Estado. E aí tocamos no cerne da questão, os níveis de corrupção nunca foram tão elevados como neste momento. E onde há muita corrupção tem que haver violência, tem que haver um poder musculado para que as pessoas não possam denunciar, porque aquilo que nós temos vindo a denunciar não é crime nenhum, é dizer ao Presidente eleito que ele não pode, constitucionalmente, negociar os acordos de petróleo. Nós temos um sistema semipresidencialista e, portanto, há outros órgãos de soberania que têm de ser consultados: cabe ao Governo negociar, cabe à Assembleia avalizar e cabe ao Presidente promulgar a decisão. Mas aquilo que ele pretende é de facto ser o rei, dono e senhor de tudo. Esse acordo do petróleo com o Senegal foi denunciado e o Presidente eleito afirmou sempre que esse acordo nunca tinha sido assinado, depois, acabou por se ver que a denúncia era verídica. Num país democrático, onde o Estado funcione, um Presidente que não diga a verdade, normalmente é destituído das suas funções.


Mas acha que esses acordos são lesivos dos interesses da Guiné-Bissau?


Sim e houve, aliás, uma resolução da Assembleia considerando esse acordo nulo e sem qualquer efeito. Os deputados da nação puseram um travão em todo esse processo. Um outro problema que se está a tentar resolver é a problemática de Casamansa. Há um conflito na região sul do Senegal e o Senegal quer ver esse problema resolvido. Mas o problema de Casamansa não pode ser considerado um problema meramente do Senegal, é um problema sub-regional e que deve envolver todas as partes, todos os Estados limítrofes. O Senegal queixa-se de que os casamansenses chegam, atacam e fogem para o nosso território, mas é muito difícil combater isso se não houver um entendimento entre todos os Estados, na medida em que são as mesmas populações com fronteiras extremamente porosas. Haveria uma necessidade de estabilizar aquela sub-região para que pudéssemos, em conjunto, pensar no desenvolvimento integrado e o acordo do petróleo poderia surgir nesse quadro, mas num contexto absolutamente legal. Mas há outros interesses subjacentes a esse acordo do petróleo que aguardamos que venham ao de cima.

 

Voltando à questão das eleições antecipadas e da má relação do Presidente com os outros órgãos de soberania. Umaro Sissoco Embaló tem agido como se houvesse na Guiné-Bissau um regime presidencialista…


Absolutamente, não há dúvidas nenhumas. O grande problema disto é quando as Constituições são feitas em função das pessoas e, de facto, abriu-se uma excepção no tempo do Nino Vieira, permitindo-lhe presidir ao Conselho de Ministros quando achasse por bem e ele ia quando se tratava de questões de amplitude nacional. O que acontece agora é que ele [Embaló] preside a todos os Conselhos de Ministros e dá ordens. Inclusive o primeiro-ministro não pode convocar o Conselho de Ministros na sua ausência. Isso é o indicador mais do que evidente do tipo de regime que ele quer. Quando o indivíduo se roga o direito de violar sistematicamente a Constituição e quando o sistema judiciário está completamente corrompido, a quem é que nos vamos queixar? O princípio da separação de poderes que consta na Constituição da República é completamente aviltado, portanto, o Presidente decide, faz e quem não cumprir...


O facto de a Assembleia não ter aceitado discutir a proposta de revisão constitucional do Presidente tornaram a dissolução e as eleições antecipadas inevitáveis?


Pesou. Aí, os parlamentares foram unânimes em dizer que, como está previsto na Constituição, a revisão constitucional é um direito exclusivo dos deputados e da Assembleia. Quem não entende isso é porque não quer respeitar os valores da democracia. Agora, a Assembleia foi dissolvida e estamos num imbróglio terrível, porque os deputados deveriam estar a debater e a escolher os novos membros da Comissão Nacional de Eleições (CNE), porque a anterior caducou. E ninguém vai aceitar ir para eleições em condições de absoluta ignorância daquilo que são as leis. A direcção Interina da CNE diz que está perfeitamente apta para realizar as eleições. Qualquer um pode dizer que está apto para convocar as eleições, mas o que importa é saber se legalmente, têm o direito de convocar e organizar essas eleições. Os seus quatro anos terminaram e não há prorrogação do mandato. O grande problema que temos aqui é que os membros da CNE têm que merecer a aprovação de dois terços dos deputados.

 

Acha que há condições para que as eleições de Dezembro sejam livres e justas? 

 

Penso que à partida não. Sem uma nova CNE, sem as garantias de que os partidos possam exercer a sua actividade em segurança, não há condições para que haja eleições livres, justas e transparentes. A opacidade é que vai tomar conta de todo esse processo. "Disse sempre a diferentes formações políticas portuguesas: quando a esquerda está no poder, normalmente agem connosco com algum complexo de culpa; quando está a direita, sentimos que há algum complexo de paternalismo; agora, quando há coabitação entre a direita e a esquerda, ficamos numa situação híbrida, com uma no cravo e outra na ferradura para não se pronunciarem de forma clara e depois esperam que as eleições corram em conformidade com os valores difundidos pela CPLP."

 

Marcelo Rebelo de Sousa disse na semana passada que espera que as eleições de Dezembro possam ser realizadas cumprindo os valores da CPLP...

 

O que quer isso dizer? Quando não ouvimos de Portugal uma palavra de condenação dos actos criminosos que ocorreram na Guiné-Bissau. Só o último ministro dos Negócios Estrangeiros se pronunciou, numa nota breve, a condenar a tentativa de assassinato de um deputado.

 

Portugal tem sido conivente com aquilo que se está a passar na Guiné-Bissau?

 

Não direi conivente, não quero utilizar termos que possam ser considerados injuriosos, temos um profundo respeito por Portugal e pela democracia portuguesa. O papel de Portugal seria importante no sentido de ajudar a corrigir determinados erros. A diplomacia portuguesa dir-se-ia cansada com tudo o que se passa na GuinéBissau.  Se vejo um amigo com dificuldades, vou tentar ajudá-lo. Disse sempre a diferentes formações políticas portuguesas: quando a esquerda está no poder, normalmente agem connosco com algum complexo de culpa; quando está a direita, sentimos que há algum complexo de paternalismo; agora, quando há coabitação entre a direita e a esquerda, ficamos numa situação híbrida, com uma no cravo e outra na ferradura para não se pronunciarem de forma clara e depois esperam que as eleições corram em conformidade com os valores difundidos pela CPLP.

 

A Guiné-Bissau cumpre meio século de independência em 2023. Acha que, aos 50 anos, é um Estado falhado?

 

Penso que não. A Guiné-Bissau afirmou-se ao longo dos anos e tinha todas as condições de evoluir como um Estado normal, sem os problemas que vivemos. Mas aqueles que estiveram no poder esqueceram-se do compromisso que assumiram, particularmente muitos combatentes pela liberdade da pátria, que perderam o sentido patriótico, perderam o sentido de compromisso com o povo da Guiné-Bissau. Isso levou a que todo este processo descarrilasse. Hoje fala-se da Guiné-Bissau como um narcoestado. Admito que, tendo em conta a fragilidade das suas instituições e as apetências de alguma gente ligada ao poder, a Guiné-Bissau tenha sido utilizada pelo narcotráfico e pelo crime organizado, mas o narcoestado é quando as instituições do Estado estão envolvidas directamente no narcotráfico, o que não acontece na Guiné-Bissau. Mas durante o Governo anterior, em que serviu como ministro, as autoridades conseguiram a maior apreensão de droga de sempre no país, 1800 toneladas, e duas pessoas, Braima Seidi Bá e Ricardo Monje, foram condenadas no processo.

 

Agora, o Supremo Tribunal anulou a sentença, isso não é um sinal de que o narcotráfico domina as instituições?

 

É um sinal de que há conluio, de que há interesses, mas não são as instituições, são as pessoas. Para ser um narcoestado, o Estado teria que estar mergulhado no narcotráfico e o dinheiro seria utilizado em prol de algumas acções do Estado, mas nós não vemos isso. 

 

Quer dizer que não tem sequer o lado positivo do narcoestado?

 

A Guiné-Bissau tem a fama mas não tem qualquer proveito enquanto Estado. Em 2020 tinha proposto um necessário pacto político-social, mas ninguém o ouviu... Os interesses tornam as pessoas surdas e o problema persiste. Sinto que há uma ausência de sentido patriótico extremamente forte. O guineense começa a tornar-se egoísta e isso vem também do tipo de regime que instauramos, da ausência de educação. A nossa salvação será apostar na educação, apostar na cultura, para podermos atingir os objectivos do desenvolvimento. Precisamos de uma solução que nos leve a uma plataforma de entendimento entre todos e a partir daí construir de facto o país. Temos de concordar sobre políticas de educação, saúde, juventude, para todos os sectores da vida do país e podermos dizer que abaixo dessa plataforma ninguém desce. A grande realidade é que quando eu saio, vem outro e faz a política de terra queimada, arrasa tudo, para recomeçar em vez de pegar no que foi feito para dar continuidade.

 

Essa seria a base para a refundação do Estado?

 

Como falamos da refundação do Estado, muita gente diz “bom, vocês querem fazer uma nova independência...” Não, nós queremos é que se alterem as práticas nefastas que têm ocorrido ao longo dos anos e que têm conduzido à situação degradante que o país tem vivido. Temos que ser capazes de recuperar aquilo que eram os valores societários guineenses. Se não conseguirmos fazer isso, corremos o risco de caminhar para um Estado falhado de facto. Mas continuo a acreditar que a esperança de vida da GuinéBissau ainda não acabou.

Notabanca; 13.07.2022

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