KAFFT KOSTA DEFENDE REFORMA DAS INSTITUIÇÕES E LAMENTA MORTES ATAQUES E PERSEGUIÇÕES AOS CRÍTICOS DO REGIME
Constitucionalista Kafft Kosta defende, em entrevista à DW, a refundação do Estado guineense que "passe por uma reformatação das instituições do país". Académico lançou o seu novo livro neste sábado (12.2).É com dor e tristeza profunda que o professor universitário guineense, Emílio Kafft Kosta, acompanha a atual situação política na Guiné-Bissau, marcada pela recente intentona de golpe de Estado, mortes, ataques e perseguições aos críticos do regime vigente.
O académico ligado à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa fez estas afirmações este sábado (12.2), no dia em que lançou o seu novo livro "Contencioso Fronteiriço do Mar: Direito Internacional e Geografia (Guiné-Bissau e Senegal num Estudo de Caso).
"PENSAR DUAS VEZES"
"Todos os órgãos de soberania da Guiné-Bissau devem pensar duas vezes
antes de mergulharem o país em crises cujas consequências estão longe de poder
resolver" diz Kafft Kosta, que contesta "a dinâmica suicida de
destruição do país, "pondo em causa as liberdades fundamentais de um
Estado constitucional".
O professor de Direito aponta várias fragilidades, entre as quais a
desestruturação dos órgãos de soberania, tal é o caso do poder judicial, o que
justifica a necessidade de refundar o Estado da Guiné-Bissau. "O próprio
Estado carece de uma refundação", afirma, ao alertar que "as
instituições da Guiné-Bissau estão destruídas". E, para isso, defende uma
revisão da própria Constituição. Insiste que é preciso reconhecer a realidade e
ter "coragem" para se "proceder a essa refundação",
avisando prontamente que isso nada tem contra os fundadores do 24 de Setembro
de 1973.
"Temos de reconhecer que o nível de desestruturação do Estado é elevado
demais para se compadecer com retoques de cosmética a nível legal e
constitucional", diz o académico que, observando por exemplo
os recentes ataques à Rádio Capital FM, qualifica de grave a violação
"do direito de liberdade que faz parte da matriz da III República".
E, mais adiante, questiona: "se vamos pôr em causa todos os direitos
fundamentais, concentrando os poderes num só órgão, espezinhando e matando esta
Constituição, quem é que ganha com isso?", disse.
"CONTENCIOSO FRONTEIRIÇO DO MAR"
A DW entrevistou Kafft Kosta na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
onde lançou este sábado o seu novo livro "Contencioso Fronteiriço do Mar:
Direito Internacional e Geografia (Guiné-Bissau e Senegal num Estudo de
Caso)", apresentado pelo professor Eduardo Vera Cruz.
Não sendo um facto consumado, Kosta começa por considerar "radicalmente
inconstitucional" o acordo de partilha de recursos da zona marítima,
assinado no âmbito da Agência de Gestão e Cooperação pelo atual Presidente da
República, Umaro Sissoco Embaló, e o seu homólogo senegalês, Macky Sall, mas
sem se ter respeitado os procedimentos legais. Afirma, em alusão ao Presidente
da República guineense, que o referido instrumento foi assinado por quem não
tem competências para o fazer.
"O Presidente, à luz do ordenamento jurídico guineense, não pode e não
deve assinar quaisquer acordos internacionais. E como se confirmou que assinou,
temos que considerar que esse acordo padece de inconstitucionalidade
orgânica", sustenta. "Se assinou", acrescenta, "açambarcou
competências de outros órgãos de soberania". Isso basta para se considerar
este acordo inexistente juridicamente, como acabou por reforçar.
Segundo o académico guineense, o acordo em causa, por não existir no plano
jurídico, nem sequer deve ser contestado, política e judicialmente,
"embora se possa usar" tais "mecanismos de tutela". Admite
que o Parlamento guineense seria o órgão competente para o fazer.
DISPUTAS FRONTEIRIÇAS
O novo livro de Kafft Kosta é um fruto de uma investigação que reflete sobre o
contencioso fronteiriço entre os dois países vizinhos da África Ocidental. A
obra de Direito Internacional e de Direito Público é lançada na altura certa,
segundo Eduardo Vera Cruz, para quem "é quase impossível redesenhar as
fronteira".
Mas, o autor apresenta, neste trabalho, a definição da fronteira marítima
estabelecida em 1960 e oferece pistas para um entendimento entre as partes.
Para o intelectual guineense, ainda é importante para os dois países
encontrarem uma solução conjunta para o conflito fronteiriço marítimo,
adjacente a um problema não consumado que se prende com a partilha de zonas de
exploração conjunta de hidrocarbonetos e de recursos haliêuticos.
"O arrojo da minha proposta vai no sentido de procurar uma solução do
problema a montante". O investigador insiste que a Guiné-Bissau e o
Senegal ainda vão a tempo de resolver o conflito com seriedade, porque pode
despoletar problemas a prazo. Refere que os dois países não têm nada a ganhar
com este processo que se arrasta ao longo de vários anos.
O que falta, explica, é "o bom senso das autoridades senegalesas e
guineenses para, com base no argumento de equidade – que devia ter sido usado
durante o processo judicial – se chegar a uma outra solução". Segundo o
académico, o critério de equidade estabelecido pela Convenção de Montego Bay
(1982) iria impor um realinhamento fronteiriço equitativo.
As partes – a Guiné-Bissau e o Senegal independentes – não se reviam na
anterior convenção de 1958 sobre o Direito do Mar, que não contemplava o
referido critério. "Portanto, havia tempo para fazer o uso das ferramentas
mais modernas que a Convenção de Montego Bay ofereceu", admite. "Mas
não o fizeram", lamenta.
Por outro lado, o conflito de Casamansa "é uma questão mais
complicada", na perspetiva do professor de Direito, uma vez que o
território em causa pertence ao Senegal. Para Kafft Kosta, este é um conflito
judicial que para a Guiné-Bissau não faz sentido. "Não temos nada a ganhar
com essa guerra porque o princípio da intangibilidade das fronteiras não nos
beneficia", assegura.
"O Senegal já era independente quando ficou com Casamansa" desde o
séc. XIX. Para o académico, "o que faz sentido é pôr em causa o acordo de
1960", porque "o Senegal já era um Estado" e, como tal,
"não pode ser beneficiário pelo princípio da intangibilidade de fronteiras
herdadas da colonização".
Notabanca; 14.02.2022
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