“Vida e Destino de Jesus de Nazaré” O que se sabe sobre este homem?
Quem era esse homem que fez das desprezadas «humildade» e «mansidão» virtudes? Quem era esse homem que mostrou um Deus de compaixão e fez do amor ao inimigo uma beatitude? Era um filósofo, um profeta, hippie e feminista dois mil anos antes? O enigma ainda persiste 21 séculos depois: tantas representações e continuamos sem saber qual será a real. "Vida e Destino de Jesus de Nazaré", do historiador e teólogo Daniel Marguerat, oferece aos leitores um retrato de Jesus histórico. É um retrato não-devocional, não-doutrinário, apenas fruto de investigação histórica. O SAPO24 publica um excerto desta obra, nas livrarias a 22 de abril.
Capítulo 1
O que sabemos sobre Jesus?
A história é escrita a partir de documentos; para usar a definição de
Marc Bloch, é «conhecimento por vestígios». Que vestígios deixou Jesus de
Nazaré? Como ele próprio nada escreveu, os únicos documentos de que dispomos
provêm de terceiros. Acontece que, a partir de 1950, os vestígios em que se
baseia a procura do Jesus histórico multiplicaram-se consideravelmente: ao
inventário (clássico) dos Evangelhos do Novo Testamento juntaram-se os
testemunhos de escritos extra-canónicos, os textos do judaísmo antigo e os
achados arqueológicos da Palestina. Os investigadores de hoje não deparam com
escassez de vestígios, mas com a sua profusão, com a tarefa de diagnosticar a
fiabilidade histórica destes. Mas antes de fazer um inventário dos vestígios
e de examinar a sua fiabilidade, convido-o a reflectir sobre a idade dos
testemunhos históricos.
Jesus existiu?
No seu livro Decadência: o Declínio do Ocidente, o filósofo Michel
Onfray retoma a «teoria mitista»: Jesus não existiu. A história da sua vida
foi extraída da mitologia persa e mesopotâmica; a sua morte e ressurreição
foram modeladas pelos destinos de Baal, Marduk, Attis, Osíris ou Adónis. Os
Evangelhos seriam, portanto, pura ficção, e o cristianismo construído sobre
essa impostura.
Esta tese não é nova. Dois filósofos (Volnay e Dupuis) apoiaram-na no
final do século XVIII, mas um século mais tarde o seu mais famoso
propagandista foi Bruno Bauer, filósofo e teólogo de Berlim (1809-1882).
Bauer negou qualquer valor histórico aos Evangelhos e salientou a ausência de
qualquer menção a Jesus em escritores não-cristãos do século I. Além
disso, acrescenta, o apóstolo Paulo não diz quase nada sobre Jesus, assumindo
a sua existência sem nunca a provar. Depois de Bauer ter sido demitido do
cargo que ocupava na Universidade de Berlim, em 1839, devido às suas ideias,
um dos seus alunos registou os ensinamentos que dele recebera nos seus
próprios escritos: Karl Marx. No início do século XX, outro filósofo
alemão, Arthur Drews, inspirou Vladimir Ilyich Lenine. Foi assim que o regime
soviético difundiu na sua propaganda as teorias de Bauer e Drews sobre a
impostura cristã. Nos Estados Unidos, George Wells e Robert Price
revitalizaram-nas mais recentemente.
A tese de um Jesus imaginário não pode ser descartada de imediato. É
preciso verificá-la e questionar os seus argumentos: é verdade que Jesus só
foi mencionado pelos cristãos no século i? A fiabilidade histórica dos
Evangelhos pode ser demonstrada? O que é que Paulo sabia sobre Jesus? A arqueologia
dá-nos alguma informação? A análise dos primeiros vestígios de Jesus é
essencial.
Documentos muito próximos
Os visitantes da Biblioteca John Rylands, em Manchester, podem admirar um
fragmento de manuscrito exposto na semiobscuridade.
O seu nome de código: P52. Este pedaço de papiro, escrito em grego em
ambos os lados e datado de 125 d. C., contém algumas palavras do Evangelho de
João ( Jo 18,31-33.37-38). É o mais antigo manuscrito conhecido do Novo
Testamento. A redacção deste Evangelho data dos anos 90-95, porque menciona a
exclusão dos cristãos da sinagoga, uma medida que só aparece nos anos 80 (
Jo 9,22; 12,42; 16,2). Isto significa que cerca de trinta anos separam a
redacção do Evangelho da sua cópia no manuscrito de Manchester. Um intervalo
tão curto entre uma obra e a sua cópia não tem paralelo na Antiguidade.
Espalhados entre Paris, Filadélfia, Londres, Glasgow, Dublin e Barcelona,
existem 16 papiros (manuscritos de junco) do século III que contêm fragmentos
dos Evangelhos. O manuscrito mais antigo, que contém um Evangelho completo (
João), data do ano 200 e está conservado na Biblioteca Bodmer, perto de
Genebra. A partir do século IV, o seu número multiplicou-se.
Uma tal abundância de manuscritos e uma tal precocidade são únicas na
literatura antiga. Se o compararmos com as obras de Homero (Ilíada e
Odisseia), difundidas por todo o mundo grego, o manuscrito completo mais antigo
de que dispomos data do século IX d. C., 16 séculos depois de ter sido
presumivelmente escrito. O tratado Poética, do filósofo Aristóteles, é
conhecido através de três manuscritos antigos, o mais antigo dos quais é uma
tradução árabe do texto grego, produzida no século X, 14 séculos depois de
Aristóteles o ter escrito. O mesmo se aplica a todos os autores gregos
antigos. Acrescentaria que os grandes mestres da tradição israelita,
predecessores ou contemporâneos de Jesus (os rabinos Hilel, Shamai, Gamaliel,
Aqiba), nos chegam através da Mishná, que foi escrita, no mínimo, no ano
200; a única excepção é o rabino Gamaliel, citado no século I por Flávio
Josefo (Autobiografia, 190-191) e no livro dos Actos (Act 5,34). Por outro
lado, a vida de Jesus (que morreu em 30) está registada em quatro Evangelhos,
escritos entre 65 (Marcos) e 95 ( João). Não possuímos nenhum manuscrito
autógrafo dos Evangelhos, mas é o que acontece com todos os textos da
Antiguidade: os manuscritos dos autores perdem-se, se é que os próprios
autores copiaram o seu texto; a cópia em papiro era um ofício que só os
copistas dominavam.
Por conseguinte, sabemos mais sobre Jesus de Nazaré, desde o início da
sua vida e de forma abundante, do que de qualquer outra personagem da
Antiguidade – com uma excepção. Poderíamos mencionar Júlio César, que
escreveu as suas Memórias e de quem o historiador Nicolau de Damasco deu
testemunho muito cedo; mas a única pessoa que rivaliza com Jesus em termos de
profusão e antiguidade de provas documentais é Alexandre, o Grande, que
morreu na Babilónia em 323 a. C. Quatro biografias desta figura fabulosa foram
escritas nos vinte anos que se seguiram à sua morte por Calístenes, sobrinho
de Aristóteles, Onesícrates, Nearco e Ptolomeu, um dos seus generais. Mais
tarde, surgiram outras Vidas de Alexandre.
Contudo, pode
objectar-se, o facto de Jesus ser mencionado por autores cristãos não elimina
a dúvida sobre a sua existência. Terão os não-cristãos escrito sobre ele?
Notabanca; 18.04.2025


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